Ontem
fui desafiado a refletir sobre o sofrimento. É um dos temas que mais aprecio,
pelo que não me esquivo a refletir sobre essa temática tão dramática, que
poderá até vir a ser trágica.
Neste
pequeno ensaio que me proponho escrever, muito ficará para lá da reflexão
escrita. O tema é muito extenso e quero apenas aflorar alguns aspetos. Um item
que ficará por refletir será a questão da dor, pura e simplesmente porque não a
entendo..
Organizei
este texto em diversos níveis, os níveis do sofrer.. em cada um iniciarei com
uma citação ilustrativa.
Nível
primeiro – a inutilidade do sofrimento
«Sofrer
não serve para nada
Sofrer
limita a eficiência espiritual
Sofrer
é sempre culpa nossa
Sofrer
é uma fraqueza.»
Cesare Pavese
Nesta
citação de Cesare Pavese estão enunciadas quase todas as principais teses sobre
a inutilidade do sofrimento. O autor afirma que o sofrimento impede a
espiritualidade e acusa o homem de ser o causador do seu próprio sofrimento,
como consequência da sua errónea ação.
Estas
serão as teses que tentarei refutar nos níveis seguintes.
Não
fiquemos por aqui, avancemos na profundidade do sofrimento, para que o possamos
aceitar e torna-lo numa mais valia para a nossa caminhada espiritual.
Nível
segundo – o sofrimento como consequência do erro
«Os
homens sofrem individualmente pelas ações por eles mesmos praticadas.»
Textos
Jainistas
Através
de um sistema axiológico bem refletido e de uma ação consentânea com esse
sistema de valores, o homem tem as ferramentas necessárias para uma realização
feliz e plena da sua vida. Sempre que se afasta ou nega ou age de forma
diversa, surge o erro e com este o sofrimento.
Nível
terceiro – o sofrimento como consequência do erro alheio
«Podemos
suportar as desgraças que vêm do exterior: são acidentes. Mas sofrer pelas
nossas próprias faltas... Ah!, é esse o tormento da vida.»
Oscar Wilde
Através
desta frase de Oscar Wilde podemos compreender o sofrimento como consequência
da injustiça. Quantas e quantas vezes nós fizemos tudo tão certinho e surge o
incompreensível sofrimento. Sim, é dramático e difícil de aceitar quando ele
surge sem a sua causa estar verdadeiramente na nossa ação. Retiremos os enganos
que a nossa consciência nos possa causar. Podemos pensar que estamos
“inocentes”, mas no fundo não estamos e não temos consciência disso. Mas quando
estamos verdadeiramente inocentes? Quando verdadeiramente agimos como devíamos
agir e o sofrimento surge? Mesmo apelidando, como Wilde, de acidentes, esse
sofrimento tem alguma utilidade? Possivelmente terá, mas não serão as nossas
simples e modestas forças humanas a compreender para suportar esse sofrimento.
Avancemos!
O medo é que nos impede de seguir..
Nível
quarto – o sofrimento como processo de ilusão/desilusão
«A
causa do sofrimento humano encontra-se, sem dúvida, nos desejos do corpo físico
e nas ilusões das paixões mundanas.»
Textos
budistas
Não
é por acaso que sou cristão.. com todo o respeito pela filosofia budista, não
poderei concordar. Não quero por enquanto entrar no campo teológico, embora
esta frase, sendo deste âmbito, devesse ser respondida na mesma categoria. Se o
sofrimento for causado por uma desilusão, podemos correr o risco de responder
levianamente afirmando que só se desilude quem se ilude. Mas o sofrimento
diminui por isso? Penso que não. Aliás, há ilusões que se vão construindo sem
sabermos que é ilusão. O que é uma paixão mundana? Não serão todas as paixões
mundanas?! Está bem, pensemos apenas ao nível mais físico e corpóreo.. não
creio que os desejos físicos frustrados, bem como as ditas paixões mundanas nos
tragam alguma coisa da ordem de grandeza que é o sofrimento.. talvez nos tragam
algumas dores psicológicas ou emocionais, mas não o sofrimento no seu sentido
pleno.
Nível
quinto – a utilidade do sofrimento
«Quem
é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria.»
Clarice
Lispector
Não
posso aceitar que o sofrimento seja um polo negativo de uma qualquer
bipolaridade axiológica. Não quero entrar aqui na interpretação errónea que ao
longo dos séculos fizeram da dualidade em Platão, mas o mal é uma realidade que
não existe. Pese embora possa manifestar-se na existência, não está de todo
revestido de força ontológica, de todo! O sofrimento não é uma realidade má.
Não sei se Lispector quer induzir-nos a uma certa bipolaridade, colocando o
sofrimento no polo negativo e a alegria no positivo, se assim for, prova a
utilidade do sofrimento, como caminho necessário e eficaz para a alegria.
Nível
sexto – a consequência do sofrimento
«O
sofrimento aproxima-nos de Deus.»
Santa
Teresinha do Menino Jesus
Chegamos
então àquilo que considero a verdadeira interpretação do sofrimento. Não direi
tanto.. Apresentarei agora a minha conceção do sofrimento.
Se
em vez de pensarmos o sofrimento como consequência de uma determinada ação,
quer seja nossa (consciente ou inconsciente), quer seja de outrem, se pensarmos
no sofrimento como causa para uma outra realidade, a interpretação do
sofrimento é forçosamente diferente. Se um determinado sofrimento for causado
na retidão da nossa ação ou causado por outrem sem nós termos culpa alguma,
então esse sofrimento traz em si uma grande potencialidade. Esse sofrimento
surge como um purificador que se transformará num bem maior.
O
sofrimento, mesmo não desejado, porque aí estamos perante um raciocínio da
esfera do esquizofrénico, poderá ser causa de uma realidade que pertence à
Eternidade! E o que é a nossa vida senão fazer de cada momento a Eternidade?!
Não procuremos sofrimento, mas nega-lo é bem pior! É recusar um bem maior.. é
recusar o Amor! Sim, o Amor é Eterno! Deus é Eterno, Deus é Amor! Não há Amor
fora de Deus, nem fora da Eternidade..
Então
para atingir a Eternidade, para atingir o Amor, para atingir Deus, é necessário
o sofrimento? Creio que não.. mas se o sofrimento surgir, então convertamo-lo e
aproveitemos a oportunidade que nos é dada para vivenciar já a Eternidade, o
Amor, a vida em Deus..
Post Scriptum 1: A sabedoria do povo
A
sabedoria popular nunca me deixa indiferente. Claro que essa sabedoria, com
todo o respeito, localiza-se, na maior parte das vezes, no âmbito do senso
comum. Não obstante estas notas, porventura injustas, gostaria de trazer para
aqui o seguinte provérbio popular: «Muito sofre quem ama». Então para amar
verdadeiramente é necessário sofrer? De modo algum. O sofrimento é um caminho
eficaz para o Amor!
Post Scriptum 2: A voz do poeta
Não
posso terminar este pequeno e modesto ensaio sem evocar a voz da poesia, qual
beleza que nos leva ao Amor, que nos eleva ao Amor!
Aproveito
deste modo para homenagear a grande Amália, que faz hoje 13 anos que entrou
definitivamente na Eternidade, no Amor, em Deus..
Foi Deus
Não sei, não sabe ninguém
Por que canto o fado
Neste tom magoado
De dor e de pranto
E neste tormento
Todo o sofrimento
Eu sinto que a alma
Cá dentro se acalma
Nos versos que canto
Foi deus
Que deu luz aos olhos
Perfumou as rosas
Deu oiro ao sol
E prata ao luar
Foi deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar
E pôs as estrelas no céu
E fez o espaço sem fim
Deu o luto as andorinhas
Ai, e deu-me esta voz a mim
Se canto
Não sei o que canto
Misto de ventura
Saudade, ternura
E talvez amor
Mas sei que cantando
Sinto o mesmo quando
Se tem um desgosto
E o pranto no rosto
Nos deixa melhor
Foi deus
Que deu voz ao vento
Luz ao firmamento
E deu o azul às ondas do mar foi deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar
Fez poeta o rouxinol
Pôs no campo o alecrim
Deu as flores à primavera
Ai!, e deu-me esta voz a mim.