sábado, 6 de outubro de 2012

A propósito do sofrimento

Ontem fui desafiado a refletir sobre o sofrimento. É um dos temas que mais aprecio, pelo que não me esquivo a refletir sobre essa temática tão dramática, que poderá até vir a ser trágica.
Neste pequeno ensaio que me proponho escrever, muito ficará para lá da reflexão escrita. O tema é muito extenso e quero apenas aflorar alguns aspetos. Um item que ficará por refletir será a questão da dor, pura e simplesmente porque não a entendo..
Organizei este texto em diversos níveis, os níveis do sofrer.. em cada um iniciarei com uma citação ilustrativa.

Nível primeiro – a inutilidade do sofrimento

«Sofrer não serve para nada
Sofrer limita a eficiência espiritual
Sofrer é sempre culpa nossa
Sofrer é uma fraqueza.»
Cesare Pavese

Nesta citação de Cesare Pavese estão enunciadas quase todas as principais teses sobre a inutilidade do sofrimento. O autor afirma que o sofrimento impede a espiritualidade e acusa o homem de ser o causador do seu próprio sofrimento, como consequência da sua errónea ação.
Estas serão as teses que tentarei refutar nos níveis seguintes.
Não fiquemos por aqui, avancemos na profundidade do sofrimento, para que o possamos aceitar e torna-lo numa mais valia para a nossa caminhada espiritual.

Nível segundo – o sofrimento como consequência do erro

«Os homens sofrem individualmente pelas ações por eles mesmos praticadas.»
Textos Jainistas

Através de um sistema axiológico bem refletido e de uma ação consentânea com esse sistema de valores, o homem tem as ferramentas necessárias para uma realização feliz e plena da sua vida. Sempre que se afasta ou nega ou age de forma diversa, surge o erro e com este o sofrimento. 

Nível terceiro – o sofrimento como consequência do erro alheio

«Podemos suportar as desgraças que vêm do exterior: são acidentes. Mas sofrer pelas nossas próprias faltas... Ah!, é esse o tormento da vida.»
Oscar Wilde

Através desta frase de Oscar Wilde podemos compreender o sofrimento como consequência da injustiça. Quantas e quantas vezes nós fizemos tudo tão certinho e surge o incompreensível sofrimento. Sim, é dramático e difícil de aceitar quando ele surge sem a sua causa estar verdadeiramente na nossa ação. Retiremos os enganos que a nossa consciência nos possa causar. Podemos pensar que estamos “inocentes”, mas no fundo não estamos e não temos consciência disso. Mas quando estamos verdadeiramente inocentes? Quando verdadeiramente agimos como devíamos agir e o sofrimento surge? Mesmo apelidando, como Wilde, de acidentes, esse sofrimento tem alguma utilidade? Possivelmente terá, mas não serão as nossas simples e modestas forças humanas a compreender para suportar esse sofrimento.
Avancemos! O medo é que nos impede de seguir..

Nível quarto – o sofrimento como processo de ilusão/desilusão

«A causa do sofrimento humano encontra-se, sem dúvida, nos desejos do corpo físico e nas ilusões das paixões mundanas.»
Textos budistas

Não é por acaso que sou cristão.. com todo o respeito pela filosofia budista, não poderei concordar. Não quero por enquanto entrar no campo teológico, embora esta frase, sendo deste âmbito, devesse ser respondida na mesma categoria. Se o sofrimento for causado por uma desilusão, podemos correr o risco de responder levianamente afirmando que só se desilude quem se ilude. Mas o sofrimento diminui por isso? Penso que não. Aliás, há ilusões que se vão construindo sem sabermos que é ilusão. O que é uma paixão mundana? Não serão todas as paixões mundanas?! Está bem, pensemos apenas ao nível mais físico e corpóreo.. não creio que os desejos físicos frustrados, bem como as ditas paixões mundanas nos tragam alguma coisa da ordem de grandeza que é o sofrimento.. talvez nos tragam algumas dores psicológicas ou emocionais, mas não o sofrimento no seu sentido pleno.

Nível quinto – a utilidade do sofrimento

«Quem é capaz de sofrer intensamente, também pode ser capaz de intensa alegria.»
Clarice Lispector

Não posso aceitar que o sofrimento seja um polo negativo de uma qualquer bipolaridade axiológica. Não quero entrar aqui na interpretação errónea que ao longo dos séculos fizeram da dualidade em Platão, mas o mal é uma realidade que não existe. Pese embora possa manifestar-se na existência, não está de todo revestido de força ontológica, de todo! O sofrimento não é uma realidade má. Não sei se Lispector quer induzir-nos a uma certa bipolaridade, colocando o sofrimento no polo negativo e a alegria no positivo, se assim for, prova a utilidade do sofrimento, como caminho necessário e eficaz para a alegria.

Nível sexto – a consequência do sofrimento

«O sofrimento aproxima-nos de Deus.»
Santa Teresinha do Menino Jesus

Chegamos então àquilo que considero a verdadeira interpretação do sofrimento. Não direi tanto.. Apresentarei agora a minha conceção do sofrimento.
Se em vez de pensarmos o sofrimento como consequência de uma determinada ação, quer seja nossa (consciente ou inconsciente), quer seja de outrem, se pensarmos no sofrimento como causa para uma outra realidade, a interpretação do sofrimento é forçosamente diferente. Se um determinado sofrimento for causado na retidão da nossa ação ou causado por outrem sem nós termos culpa alguma, então esse sofrimento traz em si uma grande potencialidade. Esse sofrimento surge como um purificador que se transformará num bem maior.
O sofrimento, mesmo não desejado, porque aí estamos perante um raciocínio da esfera do esquizofrénico, poderá ser causa de uma realidade que pertence à Eternidade! E o que é a nossa vida senão fazer de cada momento a Eternidade?! Não procuremos sofrimento, mas nega-lo é bem pior! É recusar um bem maior.. é recusar o Amor! Sim, o Amor é Eterno! Deus é Eterno, Deus é Amor! Não há Amor fora de Deus, nem fora da Eternidade..
Então para atingir a Eternidade, para atingir o Amor, para atingir Deus, é necessário o sofrimento? Creio que não.. mas se o sofrimento surgir, então convertamo-lo e aproveitemos a oportunidade que nos é dada para vivenciar já a Eternidade, o Amor, a vida em Deus..

Post Scriptum 1: A sabedoria do povo

A sabedoria popular nunca me deixa indiferente. Claro que essa sabedoria, com todo o respeito, localiza-se, na maior parte das vezes, no âmbito do senso comum. Não obstante estas notas, porventura injustas, gostaria de trazer para aqui o seguinte provérbio popular: «Muito sofre quem ama». Então para amar verdadeiramente é necessário sofrer? De modo algum. O sofrimento é um caminho eficaz para o Amor!

Post Scriptum 2: A voz do poeta

Não posso terminar este pequeno e modesto ensaio sem evocar a voz da poesia, qual beleza que nos leva ao Amor, que nos eleva ao Amor!
Aproveito deste modo para homenagear a grande Amália, que faz hoje 13 anos que entrou definitivamente na Eternidade, no Amor, em Deus..

Foi Deus

Não sei, não sabe ninguém
Por que canto o fado
Neste tom magoado
De dor e de pranto
E neste tormento
Todo o sofrimento
Eu sinto que a alma
Cá dentro se acalma
Nos versos que canto

Foi deus
Que deu luz aos olhos
Perfumou as rosas
Deu oiro ao sol
E prata ao luar
Foi deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar
E pôs as estrelas no céu
E fez o espaço sem fim
Deu o luto as andorinhas
Ai, e deu-me esta voz a mim

Se canto
Não sei o que canto
Misto de ventura
Saudade, ternura
E talvez amor
Mas sei que cantando
Sinto o mesmo quando
Se tem um desgosto
E o pranto no rosto
Nos deixa melhor

Foi deus
Que deu voz ao vento
Luz ao firmamento
E deu o azul às ondas do mar foi deus
Que me pôs no peito
Um rosário de penas
Que vou desfiando
E choro a cantar
Fez poeta o rouxinol
Pôs no campo o alecrim
Deu as flores à primavera
Ai!, e deu-me esta voz a mim.

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